domingo, 24 de junho de 2012

Angola - Correio em tempo de guerra (2)

Porto de Luanda

            O substantivo “guerra” advêm da palavra gótica “wirro” equivalente ao termo “confusão” no nosso idioma. Efectivamente com o deflagrar de uma guerra é intrínseco o estado de confusão que se instala no quotidiano dos povos.

            Este estado de confusão determina grandes restrições nos serviços de transportes, por qualquer das vias utilizadas, quer sejam aéreas, terrestres ou marítimas. Reduzem-se as ligações porque o estado de guerra o não permite, ou porque esses meios estão ao serviço dos serviços militares.

            Com a escassez dos meios de transporte, o serviço postal é grandemente afectado, determinando uma redução significativa do volume de correspondências circuladas. Como agravante, a este estado de confusão nas comunicações e transportes, há que ter em conta a censura às correspondências que provocavam atrasos muito significativos na sua circulação, e de certa forma inibem os utentes, com receio de que a sua vida privada seja devassada pelos censores menos escrupulosos dos seus deveres.
Figura 1 - frente
           
            Porém as populações necessitavam de continuar a desenvolver as suas actividades quer comerciais ou profissionais, assim como tinham a necessidade imperiosa de contactar com os seus familiares. Por isso continuavam a escrever mesmo que em menor frequência. A avidez e necessidade de obter as notícias por que ansiavam obrigavam-nos a encontrar formas mais rápidas de fazer circular as suas correspondências.

            A partir do ano de 1940 as correspondências de ou para Angola eram obrigatoriamente censuradas pelos ingleses através dos seus serviços instalados na África do Sul. As correspondências para Norte tinham que ir obrigatoriamente seguir para Sul para voltarem ao seu destino a Norte.
Figura 1 - verso
           
            Como exemplo, apresenta-se na Fig. 1, uma carta remetida da Catumbela (17.09.41) para Lisboa (14.12.41) com trânsito pelo Lobito (17.09.41) e Cape Town (22.09.41). Pagou de porte 3$40 correspondente a: $80 pelo 1.º porte de correio ordinário para Portugal + $40 pelo prémio de registo (Decreto 20.317 de 14.09.1931, publicado no BO de Angola n.º 42 de 17.10.1931) + 2$20 pelo 2.º porte da sobretaxa de correio aéreo do Lobito para Cape Town (10 gramas de peso). Cinta de censura do Cabo tipo 1B1 (raridade 10 John Little), amarrada com carimbo de censura de Cape Town batido a preto tipo 7A. Como se pode verificar esta carta demorou cerca de 60 fias para ir da Catumbela a Lisboa, utilizando o meio aéreo de Angola para a África do Sul.
Figura 2 - frente
           
            Para obviar a esta demora, as populações procuraram encontrar formas de transportar a correspondência de modo mais célere, algumas vezes contornando os regulamentos postais, outras vezes encontrando nos meandros desses regulamentos formas de fazerem legalmente.
           
            É o caso da carta da figura 2. Redigida de Maquela do Zombo em 28 de Outubro de 1941 foi recepcionada em S João da Madeira em 30 de Novembro, com trânsito por Lisboa a 29 de Novembro. Trinta e um dias foi o tempo necessário para a fazer chegar ao destino, o que em tempo de guerra é uma preciosidade. A carta ostenta um selo de $80 correspondente ao 1.º porte do correio ordinário (peso até 15 gramas) de Angola para Portugal (Decreto n.º 20.317 de 14.09.1931). O selo encontra-se obliterado com o carimbo de denominação de origem “LISBOA 2.ª SECÇÃO / PAQUETE” (Hosking 537).
Figura 2 - verso
           
            O valor e interesse desta carta não se resume apenas aos seus pormenores exteriores, porque é no seu interior que encontramos um texto esplendoroso, porque nos dá a conhecer uma das expeditas formas de contornar a censura inglesa e permitir que a correspondência circulasse mais rapidamente. O texto que a seguir reproduzimos é autenticamente delicioso:
“Quando escrever para cá faça o seguinte: - meta o que escreveu dentro de um envelope e feche; o endereço para mim ou Helena. Depois ponha esse envelope dentro de um outro que envia para Lisboa, derigido aos Srs Diogo & C.ª Ltd, R. Áurea, 66, 1.º. O n/ amigo Snr António Diamantino, entrega a correspondência a bordo de todos os barcos que vem para África. A sua casa de Luanda, faz depois destribuição. Deste modo evitam-se censuras e ainda que as cartas vão a África do Sul para depois virem para cá. É a solução que há muito tempo adotamos nas cartas para a família e estas tem adotado o mesmo sistema, donde resulta que temos a correspondência quasi como em tempo normal.

            Perante este texto pouco temos a acrescentar, pois ele é elucidativo, sobre a forma como circulou a carta que reproduzimos, exactamente no sentido inverso daquilo que era sugerido. Apenas acrescentamos que as cartas iam franquiadas com os selos correspondentes os quais eram obliterados, pelos serviços postais, à chegada dos navios, entregues pelos respectivos comandantes dos navios.

            Para complementar esta “estória” sobre circulação de correspondências em tempo de guerra, mostra-se na figura 3 uma belíssima carta timbrada, também dita publicitária, (ora digam lá que as cartas publicitárias não servem a filatelia nas suas diferentes vertentes) da empresa que servia de ponte e prestava um serviço inestimável aos seus clientes.
Fig. 3 - Sobrescrito entregue a bordo do paquete alemão Usaramo (20.11.1921) da Deutsche Seepost / Linnie Hanburgo-WestAfrika com 3 selos de 200 reis D. Carlos I Mouchon com sobrecarga "REPUBLICA" local, perfazendo o porte equivalente a 60 ctvs (1.º porte para cartas até um peso de 20 gramas para países estrangeiros). Á chegada foi obliterado com carimbo de denominação de origem "PAQUEBOT" de Port Elizabeth (tipo 1278 Roger Hosking).

             Uma recomendação aos finalistas iniciantes. Numa carta, ou qualquer outro objecto postal, não nos podemos limitar à análise dos seus aspectos iminentemente filatélicos, pois os conteúdos são por vezes muito importantes para a sua interpretação. No exemplo apresentado, o acto de ignorar o seu interior ou desfazer-se dele para facilitar a sua arrumação, traduzir-se-ia na perda duma importante fonte de informação. Na ausência dessa informação teríamos hoje uma plêiade de teóricos a congeminar sobre a autenticidade ou não do exemplar filatélico.

            A todos os leitores, que fazem o favor de ler os meus escritos, um bom dia de S. João, porque a sardinha está óptima e aconselha-se………………


Bibliografia

·          British Empire Civil Censorship Devices World War II / Colonies and Occupied Territories in África, John Little, 2000
·          Paquebot Cancellations of The World (Second Edition) by Roger Hosking, 1987
·          Boletim Oficial de Angola

Sem comentários:

Enviar um comentário